Monday, March 5, 2007

Mesa de Cabeceira - Excertos

I
"Havia a mulher: nada mais lhe fora dado na vida. Fora vendida por doze dólares. Abandonana pelo comprador a quem já não agradava, tinha vindo para casa dele com terror, para comer, para dormir; mas a princípio não dormia, esperando dele a maldade dos europeus, de que sempre lhe tinham falado. Ele fora bom para ela. Erguendo-se pouco a pouco do seu pavor, tinha-o tratado quando ele estivera doente, trabalhara para ele, tinha suportado as suas crises de ódio impotente. Prendera-se a ele com um amor de cão cego e martirizado, suspeitando que ele era outro cão cego e martirizado. E agora, havia o garoto. Que podia ele fazer? Dar-lhe de comer e mal. Só guardava forças para o sofrimento que podia infligir; havia mais dores no mundo do que estrelas no céu, mas a pior de todas podia ele infligir àquela mulher: abandoná-la ao morrer.
(...)
Nada era. Menos do que nada. Se tivesse dinheiro, se pudesse deixar-lho, seria livre de se fazer matar. Como se o universo o não houvesse tratado, a vida inteira, a pontapés, ainda o espoliava da única dignidade que ele tinha, que poderia possuir... a sua morte."

II

"Muitas das expressões de May não tinham efeito sobre ele: conhecia-as, e parecia-lhe sempre um pouco que ela se copiava. Mas nunca vira essa máscara mortuária (a dor e não o sono sobre uns olhos fechados), e a morte estava tão perto que aquela ilusão ganhava a força de uma premonição sinistra. Ela reabriu os olhos sem o fitar: o seu olhar perdia-se na parede branca no quadro; sem quem um só dos seus músculos se movesse , uma lágrima deslizou-lhe ao longo do nariz, ficou-lhe suspensa ao canto da boca, traindo com a sua vida silenciosa, pungente como a dor dos bichos, essa máscara inumana, tão morta como há pouco."


de A Condição Humana, André Malraux

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