Tuesday, March 27, 2007

O bom Ateu é o Ateu morto.

Nascemos, entretemo-nos (enquanto for possível), morremos. É esta é a condição humana e a verdade do ateu. Qualquer procura objectiva, científica do mundo, não pode retirar dele qualquer sentido e dirá somente isto: o mundo rege-se por leis alheias ao espírito do Homem, é independente da sua vontade e, agrave-se, este não tem sequer verdadeiro controle sobre a sua própria existência. Todo o projecto de vida é profunda incerteza, mas é sobretudo falta de fundamento. Perante o imenso vazio cósmico resultante da visão ateísta, sendo afinal o Homem uma pequena formiga insignificante num universo infinito e infinitamente gelado, resta ao ateu reconhecer a sua total nulidade e em coerência matar-se. Se nada somos, nada valemos. O ateu é por isso muito mais corajoso e inteligente do que o cristão que, coitado, é um fraco; cria a ideia de Deus para fugir com o rabo à seringa...

O problema é que o número de ateus hoje aumenta vertiginosamente e, embora a taxa de suícidios acompanhe esta evolução, o seu aumento não é proporcional. Como explicar tamanha incoerência? Fácil, os ateus que por aí andam não o são verdadeiramente, vão construindo os seus próprios Deuses. Alguns veneram o amor (o que não está nada mal visto...), outros o dinheiro, o futebol, o trabalho, a fama, a saída ao fim-de-semama, a bebedeira da sexta à noite; outros, como eu, a música. Todos vão fugindo à sua condição, não a suportam e criam algo para o qual acham que vale a pena viver. No final, porém, estaremos todos mortos, de nada terá valido as privações por que passámos, as injustiças que sofremos, mas isso também não é assim tão importante. Não existe “o final”, também morrer é uma daquelas coisas que só acontece aos outros... nomeadamente aos velhos... que, lá está, por cobardia convertem-se no final das suas vidas, não vá o diabo tecê-las...

Tuesday, March 13, 2007

Paradoxo

A nova lei do tabaco é, paradoxalmente, o resultado da promoção do mesmo tipo de ideia de liberdade que conduziu a vitória do sim no referendo ao aborto. Uma ideia de liberdade entendida como "o direito de cada um fazer aquilo que quiser, sem que ninguém tenha nada a ver com isso". O que aparentemente parece consensual esconde porém algo muito grave. Esta visão do Homem, essencialmente progressista, e que vai firmando estacas entre nós, esvazia da vida social um projecto comum para a Humanidade. Nega-o. Retira-o do debate. Assume que qualquer quadro moral resulta de uma imposição, sendo por isso mesmo prejudicial.

Destruído porém esse projecto, ou o reconhecimento da sua existência, está aberto o espaço para o nascimento de novas ditaduras: a da mediocridade, a da ciência e a do corpo/beleza. É com base nestas que projectos de lei como estes são aprovados. Mais virão.

Wednesday, March 7, 2007

A abstenção e a perspectiva económica.

Como explicar o crescimento da abstenção? Que factores estão por detrás da pouca afluência às urnas? O que motiva o eleitor?

São estas as questões a que muitos se têm proposto responder. Entre as diversas abordagens, lá está, cada vez mais frequentemente, a económica.

Como na maioria das questões de escolha, dois campos essenciais estão em jogo: o da vontade e o normativo/moral. Ainda que saiba que o deva fazer (campo normativo) posso decidir não votar pois não estou para isso(campo da vontade). Quando o objecto de escolha involve estas duas dimensões, o intrumental económico pouco tem a dizer, já que restringe a sua análise ao campo da vontade. Resta assim ao economista apresentar algumas curiosidades, até porventura politicamente relevantes. Contudo, quando discutimos a abstenção, não são os custos de oportunidade de votar o que está realmente em causa, mas o gradual afastamento do cidadão comum do sistema político que o representa, a crescente individualização da sociedade, a perda do sentido colectivo. O debate essencial trava-se no campo moral/normativo. Tornar o voto mais fácil (como certamente receitará qualquer economista) reduzirá a abstenção mas não resolve o seu problema.

Entre os economistas cresce uma desmesurada arrogância, uma espécia de crença irracional que nos leva a pensar capazes de resolver tudo, de falar sobre tudo. Temos contudo de perceber qual o nosso papel na vida social. Temos sobretudo de perceber que ao falar para a sociedade sob uma alçada supostamente “neutra”, positiva, que tenta esvaziar o debate do campo normativo, contribuímos de facto para uma alteração do quadro moral, promovendo um mundo regido pelo calculismo.

Monday, March 5, 2007

Mesa de Cabeceira - Excertos

I
"Havia a mulher: nada mais lhe fora dado na vida. Fora vendida por doze dólares. Abandonana pelo comprador a quem já não agradava, tinha vindo para casa dele com terror, para comer, para dormir; mas a princípio não dormia, esperando dele a maldade dos europeus, de que sempre lhe tinham falado. Ele fora bom para ela. Erguendo-se pouco a pouco do seu pavor, tinha-o tratado quando ele estivera doente, trabalhara para ele, tinha suportado as suas crises de ódio impotente. Prendera-se a ele com um amor de cão cego e martirizado, suspeitando que ele era outro cão cego e martirizado. E agora, havia o garoto. Que podia ele fazer? Dar-lhe de comer e mal. Só guardava forças para o sofrimento que podia infligir; havia mais dores no mundo do que estrelas no céu, mas a pior de todas podia ele infligir àquela mulher: abandoná-la ao morrer.
(...)
Nada era. Menos do que nada. Se tivesse dinheiro, se pudesse deixar-lho, seria livre de se fazer matar. Como se o universo o não houvesse tratado, a vida inteira, a pontapés, ainda o espoliava da única dignidade que ele tinha, que poderia possuir... a sua morte."

II

"Muitas das expressões de May não tinham efeito sobre ele: conhecia-as, e parecia-lhe sempre um pouco que ela se copiava. Mas nunca vira essa máscara mortuária (a dor e não o sono sobre uns olhos fechados), e a morte estava tão perto que aquela ilusão ganhava a força de uma premonição sinistra. Ela reabriu os olhos sem o fitar: o seu olhar perdia-se na parede branca no quadro; sem quem um só dos seus músculos se movesse , uma lágrima deslizou-lhe ao longo do nariz, ficou-lhe suspensa ao canto da boca, traindo com a sua vida silenciosa, pungente como a dor dos bichos, essa máscara inumana, tão morta como há pouco."


de A Condição Humana, André Malraux

Saturday, March 3, 2007

Aborto - Breve Leitura dos Resultados

A vida foi a referendo e perdeu, é esta a única leitura possível dos resultados. Perdeu o valor primordial, prevaleceu o livre exercício da vontade. Ainda que a campanha do sim tenha sido moderada, ainda que o “na minha barriga mando eu” tenha dado lugar à promoção da vitimização da mulher que aborta, quem votou sim no referendo optou, conscientemente, pela escolha em detrimento da vida. É certo que a vida intra-uterina foi sucessivamente apagada da discussão, que a necessidade de despenalização ofuscou por completo a sua existência. Esta anestesia colectiva é porém, um sinal em si mesmo.

Em conflito estiveram duas visões, uma laica e outra religiosa. A primeira, que remete a espiritualidade para a esfera individual, concebe-a, na realidade, como inimiga da vida colectiva, como sua rival. Esforça-se assim por eliminá-la. Verdade seja dita, tem-no conseguido. Uma vez destruído o projecto cristão para o Homem, uma vez inexistente a vertente espiritual, desaparece do cidadão comum o fundamento para o seu sofrimento. É por isto que quem votou sim no último referendo não compreende a existência de filhos indesejados, não concebe que também os pobres podem ser felizes, que um deficiente não constitui um ser humano inferior. Todo o sofrimento necessita de ser eliminado, a qualquer custo. Mesmo que seja necessária esta anestesia colectiva do vislumbre do outro.

Friday, March 2, 2007

Aldous Huxley

tem andado na moda graças às novas descobertas no campo da genética e das discussões sobre o referendo do aborto. Neste romance o autor constrói-nos um universo no qual os seres humanos são fabricados, condicionados ainda antes do seu nascimento. Um processo que é perpetuado até à sua morte e que resulta na anulação da individualidade, na perda do valor inviolável da vida humana. Uma vez colocada a possibilidade da sua fabricação, carece de fundamento o direito à vida de cada homem. Este não é mais uma realização única, irrepetível e por isso mesmo absolutamente necessária, divina. Como qualquer outro produto industrial torna-se sim, dispensável, substituível.

Na procura pela manutenção desta nova sociedade, os seus admnistradores, conscientes do perigo da descoberta do individual, eliminam da vida quotidiana dos seus membros os momentos de silêncio, de reflexão, que sugerem transcendência. O seu urgente apelo é substituído pelo recurso à droga. Vive-se sem necessidade de Absoluto.

É estranho verificar até que ponto vivemos algo parecido. Temos medo do silêncio. Estar-se sozinho é estranho, é sinónimo de exclusão. Acabada a vida produtiva, terminado o turno diário de 8 horas de trabalho, é nos oferecida constante alienação, não só no futebol, nas telenovelas, na televisão ou no invasivo bombardeamento de publicidade a que estamos sujeitos. Toda a arte é também ela paraíso dos sentidos, quer se trate de cinema, música, teatro ou literatura. Somos preenchidos por pequenos enredos vazios de conteúdo, porventura complicados na forma, mas que nada têm a dizer. Procura-se passar um bom bocado, esquecer o trabalho, entreter-se. A descoberta do “eu” não é sequer superfula, é antes prejudicial... “não penses muito nisso”, que conselho tão acertado!! Tal como no admirável mundo novo substitui-se o apelo da transcendência pelo dos sentidos, pela satisfação imediata e curriqueira, que não nos preenche, é certo, mas que por isso mesmo tem de estar inimterruptamente a ser satisfeita. Vivemos numa tempo sem necessidade do Absoluto. Num mundo dominado pela crença na ciência vivemos como pequenos átomos, na esperança de que os nossos choques não criem muitas ondas. É-nos negado acesso à verdadeira procura, sim, porque não existe verdadeira liberdade nesta escolha.

Num dos poucos redutos contra-corrente encontra-se a música clássica. Apreciá-la torna-se assim uma experiência verdadeiramente transformadora, comparável mesmo só à do amor ou da fé.